sexta-feira, 30 de julho de 2010

... Lassance - MG para o Mundo ...



Em junho de 1907, Carlos Chagas foi designado por Oswaldo Cruz, que chefiava o Instituto de Manguinhos e a Diretoria Geral de Saúde Pública, para combater uma epidemia de malária que paralisava as obras de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil em Minas Gerais, na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora. No povoado de São Gonçalo das Tabocas (onde se construía uma estação da ferrovia e que, com a inauguração desta em 1908, ganharia o nome de Lassance, em homenagem a um engenheiro da Central do Brasil), ele instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Enquanto coordenava a campanha de profilaxia, coletava espécies da fauna brasileira, motivado por seu crescente interesse pela entomologia e pela protozoologia. Num contexto de difusão internacional das teorias da medicina tropical, estas eram áreas que assumiam grande importância no projeto de Oswaldo Cruz de transformar o Instituto de Manguinhos num renomado centro de medicina experimental. Em 1908, ao examinar o sangue de um sagüi, Chagas identificou um protozoário do gênero Trypanosoma, que batizou deTrypanosoma minasense. A nova espécie era um parasito habitual, não patogênico, do macaco. Naquele período, o estudo dos tripanossomas atraía a atenção dos pesquisadores no campo da medicina tropical, especialmente depois que se comprovou que, além de doenças animais, tais protozoários causavam enfermidades humanas, como a tripanossomíase africana. Tradicionalmente conhecida como doença do sono, esta enfermidade causava grande preocupação entre os países europeus que tinham colônias naquele continente. Além da busca de novos parasitos, Chagas estava atento a artrópodes que pudessem servir-lhes de vetores. Numa viagem a Pirapora, ele e Belisário Penna (seu companheiro na missão de combate à malária) pernoitaram, junto com os engenheiros da ferrovia, num rancho às margens do riacho Buriti Pequeno. O chefe da comissão de engenheiros, Cornélio Homem Cantarino Mota, mostrou-lhes então um percevejo hematófago muito comum na região, conhecido vulgarmente como barbeiro, pelo hábito de picar o rosto de suas vítimas enquanto dormiam. Era abundante nas choupanas de pau-a-pique da região, escondendo-se nas frestas e buracos das paredes de barro durante o dia e atacando seus moradores à noite. Sabendo da importância dos insetos sugadores de sangue como transmissores de doenças parasitárias, Chagas examinou alguns barbeiros e encontrou em seu intestino formas flageladas de um protozoário, com certas características que o fizeram pensar que poderia tratar-se de um parasito natural do inseto ou então de uma fase evolutiva de um tripanossoma de vertebrado. No caso desta segunda hipótese, poderia ser o próprio T. minasense, sendo o barbeiro o vetor que o transmitiria aos sagüis. Por não dispor em Lassance de condições laboratoriais para elucidar a questão, uma vez que os macacos da região estavam infectados pelo minasense, Chagas enviou a Manguinhos alguns daqueles insetos. Oswaldo Cruz os fez se alimentarem em sagüis criados em laboratórios (e portanto livres de qualquer infecção) e, cerca de um mês depois, comunicou a Chagas que encontrara formas de tripanossoma no sangue de um dos animais, que havia adoecido. Voltando ao Instituto, Chagas constatou que o protozoário não era o T. minasense, mas uma nova espécie de tripanossoma, que batizou então de Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre. A nota anunciando esta descoberta foi redigida em Manguinhos em 17 de dezembro de 1908 e publicada na revista do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo (Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene), no início de 1909. Em Manguinhos, Chagas iniciou estudos sistemáticos sobre o ciclo evolutivo do novo parasito que, em cumprimento a dois dos postulados de Koch, mostrou-se capaz de infectar experimentalmente cães, cobaias e coelhos e de ser cultivado em agar-sangue. O barbeiro, por sua vez, passou a ser minuciosamente investigado por Arthur Neiva, também pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz. Em busca de outros hospedeiros vertebrados do T. cruzi e suspeitando que o homem pudesse ser um deles – hipótese reforçada por seus conhecimentos sobre a malária, também transmitida por um inseto hematófago domiciliário e causada por um hematozoário –, Chagas retornou a Lassance. Sobre o raciocínio que empreendeu naquele momento, relatou, em trabalho publicado na revista Brasil Médico em 1910: “Leváramos, como idéia diretriz, a noção de constituírem os domicílios humanos o habitatpredileto, senão exclusivo, do hematófago, assim como o fato, amplamente verificado, de ser o sangue humano a alimentação por excelência dele. Seria razoável pensar, daí, numa condição infectuosa intra-domiciliária e que o vertebrado hospedeiro do parasito fosse algum animal doméstico ou o próprio homem”. Esta hipótese também explicaria certos fenômenos mórbidos que havia observado na região e que não se encaixavam no quadro nosológico conhecido. Em Lassance, Chagas empreendeu exames sistemáticos de sangue nos moradores. Ao examinar animais domésticos, verificou a presença do T. cruzi no sangue de um gato. No dia 14 de abril de 1909, encontrou finalmente o parasito no sangue de uma criança febril. Em nota prévia publicada no Brasil Médico, uma das principais revistas médicas do país, anunciou a descoberta: “Num doente febricitante, profundamente anemiado e com edemas, com plêiades ganglionares engurgitadas, encontramos tripanossomas, cuja morfologia é idêntica à do Trypanosoma cruzi. Na ausência de qualquer outra etiologia para os sintomas mórbidos observados e ainda de acordo com a experimentação anterior em animais, julgamos tratar-se de uma tripanossomíase humana, moléstia ocasionada pelo Trypanosoma cruzi, cujo transmissor é o Conorrhinus sanguissuga”. Berenice, uma menina de dois anos, era o primeiro caso daquela que seria considerada a partir de então uma nova doença humana. O fato foi divulgado também mediante publicações nos Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene e no Bulletin de la Société de Pathologie Éxotique. Aos 22 de abril, ao mesmo tempo em que o Brasil Médico trazia em suas páginas a descoberta feita no norte de Minas, o feito foi comunicado, em sessão da Academia Nacional de Medicina, por Oswaldo Cruz, que leu um trabalho escrito por Chagas. A imprensa deu destaque ao episódio, reverenciado como uma das “glórias de Manguinhos”. A descoberta e os primeiros estudos da nova entidade mórbida tiveram um impacto decisivo na carreira científica de Chagas, que alcançou grande proeminência no mundo científico, com efeitos diretos em sua inserção na vida institucional de Manguinhos. Em março de 1910, Oswaldo Cruz realizou concurso para preencher a vaga de “chefe de serviço” aberta com a saída de Henrique da Rocha Lima. Este foi um evento de grande importância para a instituição, pois o ocupante do cargo era visto como o mais provável candidato à sucessão de Oswaldo Cruz. Chagas obteve a primeira colocação e os trabalhos que havia publicado sobre a nova doença tiveram grande peso para tanto. Em 26 de outubro de 1910, Chagas foi admitido solenemente como membro titular da Academia Nacional de Medicina, onde proferiu uma conferência apresentando seus estudos clínicos e farto material sobre a doença, inclusive imagens cinematográficas feitas em Lassance. No ano seguinte, um evento marcou a divulgação da descoberta e da nova doença no cenário científico internacional. No pavilhão brasileiro da Exposição Internacional de Higiene e Demografia, realizada em Dresden, Alemanha, a doença de Chagas foi apresentada com destaque, despertando grande interesse do público. Tal projeção expressava a importância que o tema assumia como carro-chefe e vitrine das pesquisas do Instituto Oswaldo Cruz. Outro marco importante da repercussão internacional da descoberta foi a conquista, por Chagas, em 1912, do Prêmio Schaudinn, concedido de quatro em quatro anos pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo ao melhor trabalho em protozoologia. Graças à repercussão da descoberta e dos estudos de Chagas, Oswaldo Cruz obteve junto ao governo federal verbas especiais para equipar um pequeno hospital em Lassance, visando sediar os estudos clínicos sobre a nova doença, e para dar início, em Manguinhos, à construção de um hospital destinado às pesquisas e acompanhamento dos casos clínicos identificados no norte de Minas Gerais e em outras regiões do país. Sob a liderança de Chagas e com a colaboração de vários pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (como Gaspar Vianna, Arthur Neiva, Astrogildo Machado, Eurico Villela, Carlos Bastos de Magarinos Torres, entre outros), a nova tripanossomíase passou a ser estudada em seus vários aspectos, como as características biológicas do vetor, do parasito e de seu ciclo evolutivo, o quadro clínico e a patogenia, as características epidemiológicas, os mecanismos de transmissão e as técnicas de diagnóstico. Assumindo centralidade na agenda de pesquisas do Instituto Oswaldo Cruz e no próprio processo de institucionalização da atividade científica no país, a descoberta da doença de Chagas passou a ser tratada pelos contemporâneos e pela memorialística médica, até o presente, como um mito glorificador da ciência brasileira. Uma das considerações que se tornariam mais recorrentes quanto à importância da descoberta como “feito único” da ciência nacional foi o caráter incomum da seqüência sob a qual ela ocorreu, já que se partiu da identificação do vetor e do agente causal para em seguida determinar a doença a eles associada. Outro aspecto singular foi o fato de o mesmo pesquisador haver descoberto, num curto intervalo de tempo, um novo vetor, um novo parasito e uma nova entidade mórbida. A historiografia sobre a descoberta da doença de Chagas ressalta sua inscrição no contexto de afirmação e institucionalização da medicina tropical européia, tanto em função dos referenciais teóricos que a viabilizaram, quanto pela contribuição que a própria descoberta trouxe para a consolidação da nova especialidade médica criada na Inglaterra por Patrick Manson nos últimos anos do século XIX. Sá (2005) aponta, por exemplo, a importância do estudo do T. cruzi para a elucidação de questões relativas à relação parasito-vetor no caso das infecções causadas por tripanossomas. Outro aspecto salientado pelos historiadores é a importância da descoberta como fonte de legitimação, visibilidade e recursos – materiais e simbólicos – para o Instituto Oswaldo Cruz. Stepan (1976), Benchimol e Teixeira (1993) enfatizam que ela propiciou a consolidação da protozoologia como área de concentração das pesquisas na instituição e impulsionou o seu reconhecimento na comunidade científica internacional como renomado centro de investigação sobre doenças tropicais. Kropf (2006) chama a atenção para que se, por um lado, a descoberta contribuiu para dar sentido e reforçar o projeto institucional de Manguinhos, ela própria ganhou sentidos particulares como “grande feito da ciência nacional” em função dos significados associados a este projeto, que se apresentava publicamente como destinado a associar excelência acadêmica e compromisso social em identificar e solucionar os problemas sanitários do país. Curiosidade: Chagas foi pai de farmacêutica, em Lassance - MG Uma história ainda pouco conhecida sobre a Lassance antiga é o nascimento de Maria dos Impossíveis Franco, farmacêutica cuja paternidade é atribuída a Carlos Chagas.

Um comentário:

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